Na rede

quinta-feira, dezembro 15, 2011

O Registro Unificado de Obras c/ Licença Pública: soluções possíveis para o direito autoral na era digital

Existe uma novidade importante introduzida pela Ministra Ana de Hollanda no trâmite da proposta de nova lei para o marco regulatório do direito autoral, a qual deve ser encaminhada para análise pelo congresso em breve. Trata-se da proposta do registro unificado de obras, cujo objetivo é que todo um conjunto de informações referenciais sobre o que se cria no país estejam reunidas em uma única plataforma pública. Segundo a proposta, essa plataforma será disponibilizada pelo Ministério da Cultura do Brasil e tem como perspectiva de médio e longo prazo dialogar com outras plataformas de igual propósito.

Com a introdução do registro unificado de obras, surge a oportunidade de se implementar uma licença pública, contemplando as especificidades da circulação em meio digital, a ser definida pelo próprio autor no ato de registro de sua obra. Tal licença deverá ser construída de forma a permitir ao detentor dos direitos da obra definir o grau de proteção, e / ou de incentivo à circulação, conforme sua disposição pessoal. Um vez implementada, a plataforma de registro unificado com licença pública poderá prover a necessária segurança jurídica aos autores interessados em explorar arranjos diferenciados de proteção autoral. Teremos condições, também, de gerar os indicadores necessários à avaliação de desempenho destes novos modelos, provendo informações valiosas para futuros investimentos em circulação de conteúdos no meio digital.

É importante salientar que esta proposta surge como resultado de um esforço em compatibilizar as conquistas sociais proporcionadas pela democratização do acesso à informação trazida pela Internet, com o devido respeito aos direitos de autor na rede. A idéia surge de uma prospecção interdisciplinar, integrando arranjos jurídicos, tecnológicos e institucionais em condições de promover a circulação dos bens digitais em sintonia com os fluxos típicos da rede. Tratamos também de formular um arranjo em condições de garantir a atribuição de autoria na dimensão do software, assim fomentando o surgimento de novos modelos de negócio para a cultura digital, e novas formas de gestão dos direitos de autor.

Cabe aqui um comentário sobre alguns aspectos relevantes da atual economia da rede. A internet, ao promover a idéia da livre circulação de informações, projeta um cenário no qual os serviços relativos aos conteúdos, ao invés da própria informação, tornam-se as principais fontes de ganho econômico. O modelo de livre circulação, que na prática significa “conteúdo grátis”, estabelece a “publicidade” como arranjo negocial fundamental da dimensão aberta da economia da informação.

Uma vez estabelecido, tal cenário mostra-se concentrador e refratário a novos concorrentes, pois no momento em que as redes se estabelecem fica difícil reduzir o seu poder. A efetividade do modelo de agenciamento da publicidade nos ambientes onde os conteúdos são referenciados (máquinas de busca e redes sociais) depende de escala, o que explica o crescimento exponencial de gigantes como o Google e o Facebook. Neste contexto, torna-se quase impossível pensar em uma política nacional para o ambiente digital, seja na proteção dos direitos dos criadores locais, ou mesmo na promoção da diversidade cultural brasileira na rede.

No processo de concepção do registro unificado com licença pública, partimos do princípio de que o controle de acesso aos conteúdos deixa de ser efetivo, ou mesmo possível, como modelo de negócio para a classe criativa na rede. Isto se dá porque o advento da cópia digital idêntica, com custo (próximo a) zero, estabelece uma nova modalidade, uma nova cultura de acesso à informação.

Nesta configuração em que os conteúdos se valorizam na medida em que circulam e ganham visibilidade, entendemos que é importante reforçar, jurídica e tecnologicamente, a atribuição de autoria e a expressa determinação do criador quanto aos direitos que deseja serem respeitados no acesso a cada um dos objetos digitais fruto de sua obra. A partir deste arranjo jurídico/tecnológico, estabelecido com base no modelo ‘dados abertos’, novas aplicações e serviços para promoção e/ou monitoramento da circulação dos conteúdos podem surgir, de acordo com a intenção de seus produtores.

Um aspecto fundamental do arranjo proposto indica que a base de dados do registro unificado de obras intelectuais, que projeta uma utilização aberta por parte da sociedade, deve contemplar um arranjo de governança institucional que estruture um diálogo permanente com os setores diretamente envolvidos no uso das informações contidas na base. Para atender às premissas que orientam a implementação do conceito ‘governo como plataforma’, a governança sobre os dados públicos deve contemplar instância que compartilha com a sociedade a responsabilidade sobre decisões que afetam o funcionamento do ecossistema de aplicações que emergirá a partir destas informações organizadas.

O processo de implementação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, da forma como está proposto, poderá contribuir com insumos importantes para o detalhamento progressivo deste arranjo que contempla a organização e disponibilização pública dos dados referentes ao registro unificado, à licença pública, e aos metadados dos conteúdos da cultura brasileira. De nossa parte estaremos prontos para contribuir com esta construção coletiva, cujo desafio é arquitetar as soluções legais, tecnológicas e institucionais que possam contemplar a efetivação de um marco regulatório do direito autoral em condições de responder de forma qualificada às demandas da sociedade da informação.

Abaixo, uma breve entrevista que aborda a possibilidade de criação do registro unificado de obras intelectuais, com licença pública acoplada, à partir da perspectiva de implementação do SNIIC:

quinta-feira, dezembro 08, 2011

Gerenciamento de Identidade e dos Índices: projetando novos papéis para o Estado na era da informação


O modelo de implementação do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), baseado no conceito que orienta a atuação do ‘governo como plataforma’ (government as a platform), contempla uma dimensão que consideramos estratégica. Neste contexto, o estado pode se posicionar como facilitador no processo de captação e organização dos dados do setor privado para o uso público. Em nossa avaliação, esta perspectiva aplicada ao campo da cultura oferece cenários ainda mais promissores, pois os conteúdos do setor apresentam maior capacidade de mobilizar o interesse da sociedade.

Inúmeras aplicações e serviços, além de novas oportunidades de negócios e empregos, podem surgir à partir de uma plataforma digital pública que apresenta de forma aberta (open data) dados organizados referentes à cultura brasileira. Mas para que isso possa de fato acontecer, é fundamental que o Estado aprofunde sua reflexão sobre o impacto do digital na sociedade do século 21, e se reposicione para atuar diretamente em questões fundamentais e estratégicas da rede mundial.

Neste post, chamamos a atenção para dois pontos básicos: (1) a questão do gerenciamento da identidade digital pelos usuários da rede, especialmente na sua relação com o poder público, e (2) a dimensão da gestão dos índices de conteúdos, aspecto determinante que hoje se encontra absolutamente fora do alcance da atuação da política pública. Tratam-se de elementos estruturantes da arquitetura da rede, sobre os quais ainda não houve uma reflexão qualificada a partir da perspectiva do Estado, o que de certa forma cria um déficit conceitual para o formulador de políticas públicas de cultura na sociedade digital.

Para que possamos responder às demandas que o conceito de implementação do SNIIC irá provocar, é fundamental que pensemos de forma inovadora a complexa questão do gerenciamento da identidade no ambiente digital. No campo da economia criativa em meio digital, onde a ampla circulação de conteúdos autorais e os modelos de colaboração típicos da rede tornam-se elementos estruturantes para os novos arranjos políticos e econômicos, cabe ao Estado refletir sobre os espaços de atuação nos quais seu papel qualificado configura-se como estratégico e determinante.

Nossa experiência no campo das redes sociais, e especialmente o acúmulo construído no gerenciamento da rede CulturaDigital.BR, evidencia a importância das informações de atividade (logs) que compõem os perfis dos participantes, os quais podem registrar de forma organizada os dados que irão consolidar a reputação dos usuários nestes espaços de interação digital. Nestas redes, um novo tipo de meritocracia passa a vigorar, o que incentiva o desenvolvimento de novas aptidões para a articulação em rede.

Para garantir a participação qualificada da sociedade neste novo conceito de implementação do SNIIC, está em prospecção a definição de um protocolo de identidade, que hoje chamamos de ‘ID da Cultura’.  Esta reflexão, partindo do campo da cultura digital,  incorpora os mais novos elementos da ‘indentidade centrada no usuário’ (user-centric identity), assim como modelos avançados para o gerenciamento de privacidade de dados pessoais na rede. Tal iniciativa reposiciona o Estado no exercício efetivo de prerrogativas da dimensão digital pública, as quais vêm sendo apropriadas por arranjos tecnológicos e institucionais sem qualquer vinculação com o processo político democrático.

Também no campo dos índices de conteúdos da rede, a implementação do SNIIC à partir da reflexão da cultura digital ilumina novos espaços de atuação do Estado nas questões estratégicas da rede. Neste momento em que definimos uma arquitetura de informação para a cultura brasileira, e podemos desenvolver um arranjo de metadados em condições de responder às demandas de organização de dados típicas dos sistemas distribuídos e da emergente web semântica, estaremos em condições de desenvolver uma camada de índices em condições de cumprir inúmeras novas funções para a promoção do acesso à diversidade cultural brasileira. Tais funções podem, dessa forma, ser implementadas em sintonia com o interesse público.

Uma vez que tal plataforma pode servir de suporte ao registro e catalogação de todos os processos de digitalização de acervos públicos, estamos assim criando os fundamentos para as grandes bibliotecas digitais nacionais. Esta mesma base de dados oferece também uma oportunidade única para acesso e gestão otimizadas das obras caídas em domínio público, dessa forma garantindo seu verdadeiro propósito que é o de permitir a difusão e o acesso amplo desses bens do espírito para toda a sociedade.

Publicado originalmente aqui.

segunda-feira, dezembro 05, 2011

Abertura e participação cidadã na cultura digital



O texto de Aline Carvalho abaixo documenta debate ocorrido da edição 2011 do Festival CulturaDigitalBR, no Rio. Tive a oportunidade de apresentar as ações da Coordenação de Cultura Digital, ao lado de Americo Córdula e Sergio Mamberti, dirigentes da Secretaria de Políticas Culturais do Ministŕio da Cultura. O  registro vale especialmente pela platéia de qualidade presente ao debate, e pelo inspirado live-blogging da @alinecarvalho.  
Artigo originalmente publicado aqui.




A Arena do Festival estava dedicada a encontros e discussões sobre o digital, cultura e política. No domingo, 4 de dezembro, o espaço recebeu representantes do Ministério da Cultura para apresentar o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, e debater abertura de dados, transparência no governo e participação cidadã na cultura digital. O debate, que girou em torno da atual política do Ministério da Cultura para a cultura digital, foi apresentado pelo diretor de Estudos e Monitoramento de Políticas Culturais do MinC, Américo Córdula e o coordenador de Cultura Digital José Murilo Jr. 

José Murilo inicia a discussão com um panorama histórico da Ação Cultura Digital no Ministério, e faz referência ao ex-ministro Gilberto Gil na implementação dentro do governo da ética hacker: conhecer bem um processo para poder alterá-lo. Em seguida, fala do projeto da criação de um Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais, baseado na experiência da plataforma www.culturadigital.br, criada em 2009 para promover o debate em rede na formulação de políticas públicas para o digital. “A ideia é passar do culturadigital.br para um cultura.br, reunindo o maior número possível de pessoas em torno do compartilhamento de informações sobre o que está sendo produzido e circulado em termos de cultura no país”. 

Ele acredita em uma nova forma para um sistema público de informações, baseado na discussão mundial em torno do “open data” (dados abertos, em português), mas que vá além da simples disponibilização de dados, buscando a apropriação destas informações: “o objetivo é criar um verdadeiro ambiente em rede, onde as pessoas possam criar um perfil, interagir com outras pessoas e organismos, customizar os dados disponibilizados. Queremos dar um passo além, buscando a integração de uma base de dados em um ambiente que qualifique o uso destas informações, pensando a questão da identidade, das relações sociais próprias das ferramentas digitais em rede. Trata-se de um reposicionamento do Estado a partir do que vem desta rede, como temos formulado em conjunto no movimento da cultura digital, e em espaços como este festival”. 

Murilo reforçou a importância de espaços de governança baseados no modelo multi-stakeholder, que reúne sociedade civil, governo e setor privado, como é o caso do Comitê Gestor da Internet Brasileira (CGI.br). Para ele, é necessária uma reflexão conjunta sobre como responder aos arranjos do cenário digital, retomando a responsabilidade do Estado de atuar sob uma perspectiva de fato pública. Ele observa que empresas como a Google tem ocupado espaços de interesse público na internet ao oferecer hospedagem de conteúdo e mecanismos de busca. Ele atenta ainda para a importância da interoperabilidade de bases de dados e cita a digitalização de conteúdos como uma das preocupações atuais do Ministério – que tem investido na digitalização dos acervos da Biblioteca Nacional, da Funarte e da Cinemateca Brasileira de forma a integrar o SNIIC. 

Neste sentido, é retomada a discussão em torno da Lei de Direitos Autorais, que após passar por dois processos de consulta pública, será enviada em breve para votação do Congresso. A nova versão traz a proposta de um registro único de obras culturais sob uma licença pública [inspirada na implementação do SNIIC]: “O digital traz uma interessante possibilidade de registro unificado através de um gerenciamento alternativo e customizável, onde o autor decide o tipo de incentivo que deseja conferir a circulação de sua obra”. Ele explica que “a proposta do registro é reunir a atribuição autoral, uma licença customizável e a abertura de dados em uma arquitetura integrada de aplicações e serviços distribuídos em camadas de dados – ideia esta que já vem sendo pensada há muito tempo dentro dentro das discussões da cultura digital”. 


Clique para ver o debate na íntegra do artigo.

Abaixo o último parágrafo, onde consta a importante referência à DPádua:
José Murilo encerra o debate lembrando que “tudo que a gente falou aqui é influência direta de anos de reflexão coletiva. E não posso deixar de fazer referência aqui a Daniel Pádua, uma das pessoas que teve as primeiras sacadas em relação a criação de um sistema público de interação, disponibilização e apropriação de dados e conteúdos, sob a perspectiva de uma política pública integrada ao ambiente digital. Ele nos deixou justamente no dia da abertura do primeiro Fórum da Cultura Digital, o que talvez fosse um sinal que ele estivesse passando o bastão pra gente seguir em frente com isso. Como ele costumava dizer, ‘tecnologia é mato, o que importa são as pessoas’, e é por isso que estamos aqui. Um salve a D Pádua”.

domingo, outubro 09, 2011

Valeu, Steve!

Cheguei meio atrasado na conversa iniciada pelo colega Rodrigo Savazoni no 300 ('A morte de Steve Jobs, o inimigo número um da colaboração'), mas tenho que deixar registrada minha apreciação à iniciativa do post. O movimento da grande mídia em torno da morte do Steve Jobs beirou o ridículo -- o que não é novidade --, e portanto algum contraponto se fazia necessário.

Outra não-novidade é a tendência de muitos colegas em 'partidarizar' (e/ou polarizar entre esquerda e direita) todo e qualquer debate, o que resulta no empobrecimento da conversa. Mas como temos valorosos colegas participando da trédi, e na medida em que considero o tema pertinente, vou aqui apresentar os meus 'dois palitos'.

O que mais incomoda na questão são as motivações embutidas na beatificação midiática de Steve Jobs. Fica óbvia a intenção de mitificar o empreendedor genial, e de promover o modelo capitalista concentrador como vencedor histórico. Afinal, trata-se de alguém que conseguiu traduzir sua genialidade específica no que é hoje a empresa mais bem sucedida do planeta.

Este endeusamento reducionista da mídia em relação à Jobs acaba por mascarar a complexidade de um personagem que incorporou elementos em tese contraditórios em nome de sua própria arte. Me parece razoável afirmar que tivemos a oportunidade de experimentar diversos Steves no decorrer das últimas décadas, o que por si já recomenda evitar reducionismos ao avaliar seu legado.

Nas diversas etapas de sua vida, Steve copiou ('roubou'?), criou, remixou, diversificou, abriu e fechou, e principalmente ousou, com seu 'culhão do tamanho do universo' (boa, Jomar!). Sua personalidade sofisticada o permitiu enxergar as enormes oportunidades que o modelo open apresentou para o mundo da tecnologia à partir dos anos 90, e isto lhe proporcionou a vantagem competitiva necessária para criar e ao mesmo tempo ocupar as novas dimensões do mercado na cultura digital do século 21.

Uma pertinente análise da personalidade de Jobs foi apresentada por Doc Searls há 13 anos atrás no momento em que a Apple, com seu fundador de volta após um exílio sabático extremamente proveitoso, decidia aniquilar a nascente indústria de clones do Mac. Doc assim resumia a mensagem de Jobs ao mundo: "tudo o que quero de vocês é o seu dinheiro, e sua apreciação à minha Arte".
"Steve é um elitista e um inovador, com desempenho extraordinário em ambas categorias. Seus maiores êxitos são obras que inovam em beleza e estilo. Independente de seu impacto no mercado (que no caso de Lisa e NeXT foi desapontador), todos os seus projetos são como realizações artísticas. São também criações que inventam novas necessidades ('mother necessity'), que é a lógica que em geral opera nas inovações radicais." ('Doc Searls on Steve Jobs' 04/09/1997) 
Uma outra situação que ilustra a percepção sofisticada de Steve Jobs está registrada em post de fev/2007 do ecodigital, por ocasião da publicação do 'manifesto' 'Thoughts on Music', onde ele propõe o fim do DRM nos arquivos de música vendidos on-line. 

Em tese, era de se espantar que o dono da companhia que mais lucrava com o modelo de negócio baseado em DRM -- o ecossistema iTunes/iPod - viesse a público propor uma total virada nas regras do jogo. Na época eu comentava que um fator importante para o movimento seria a pressão da UE sobre o modelo de negócio do ambiente iTunes basado em DRM: 
"De forma oportuna e genial, Jobs passa a bola para as 'majors', que são as 4 grandes gravadoras que dominam o mercado mundial da música, e cuja maior parte do capital encontra-se na Europa" ('Steve Jobs propõe fim do DRM', 07/02/2007).
Portanto, apesar de saudar o post do colega Savazoni em seu aspecto provocador, não me sinto contemplado com este 'novo dualismo' que coloca de um lado os que cercam o conhecimento livre, de outro os que estimulam o compartilhamento. Tendo a achar que aqueles que desenvolvem uma percepção mais apurada das dinâmicas que tem pautado a evolução das ecologias digitais, logo percebem que é na dialética entre as lógicas livre e proprietária que emergem as estratégias mais adaptadas a este momento de transição de paradigma.

Obviamente, este entendimento agnóstico da dialética livre / proprietário não impede que tenhamos um ou outro desses lados como postura de vida, opção ideológica e prática declarada. Mas tal opção não deve excluir a avaliação estratégica de como melhor integrar estas lógicas opostas em uma dinâmica customizada para cada ocasião e setor específicos.

Como diria o colega Michel Bauwens, "onde o horizontal encontra o vertical, surgem muitas adaptações diagonais híbridas". Steve Jobs tornou-se um mestre criador destes arranjos ortogonais, e sua ênfase proprietária dos últimos anos -- influência da doença, talvez -- acabou por se tornar fator determinante para o papel da Apple neste século. O iPad sem entrada USB é símbolo indelével desta tendência discutível.

De qualquer forma, a genialidade das implementações de Jobs nos apresenta a oportunidade de discutir o futuro operando seus gadgets no presente. Cabe a cada um de nós entender e discernir as soluções apropriadas para o futuro que desejamos, construindo as 'adaptações diagonais' que melhor respondem aos desafios do nosso tempo, e do nosso espaço.

Ao final, não há como não saudar a passagem deste artista brilhante por nossas vidas. Valeu, Steve! 

quinta-feira, setembro 15, 2011

O Fórum da Internet do Brasil e a identidade digital


Este texto foi originalmente redigido como um comentário às "Provocações iniciais sobre conteúdos digitais e compartilhamento" de Rodrigo Savazoni, no espaço do I Forum da Internet do Brasil. [updated]


“Muito bom ver o debate começando por aqui! Aliás, esta iniciativa de um Fórum aberto do CGI.br já estava mais do que madura para acontecer, e vem em momento importantíssimo. Que bom!

Sobre esta questão da “nova ecologia da distribuição da informação e do conhecimento”, sobre a qual temos refletido e debatido com afinco, me parece claro algumas coisas:

Tudo se encaminha para a situação em que alguns grandes players do mercado tenham o controle sobre os padrões e protocolos que irão formatar o “jeito” como as coisas irão se dar no mundo digital do século 21.

A revolução da Abertura (openness), no que se refere ao acesso aos conteúdos digitalizados na rede, trouxe um novo fôlego para processos culturais valiosos, e proporciona as ferramentas básicas para este novo estágio da civilização — a cultura p2p.

Mas estamos diante de um processo de desenvolvimento distorcido, que se por um lado inclui e empodera amplas fatias da sociedade, por outro tem gerado uma acumulação indevida por parte dos grandes agregadores da rede.

Operados com a lógica do mercado, e subordinado a interesses geopoliticos, estes grandes players seguem avançando em escala global, e assim acumulando poder de definição dos padrões que irão cada vez mais formatar o ecossistema da rede.

Em meio a esta reflexão, que talvez se relacione com outras trilhas do Fórum, lancei uma pergunta no G+: Quem é que pode definir padrões hoje na rede?

Me chamou atenção este caso do Google lançar uma alternativa ao javascript, e foi para mim a evidência de que os grandes da rede são os que hoje podem bancar novos padrões. São estes mesmos gigantes, corporações estrangeiras como o Facebook, que gerenciam os grandes ambientes das redes sociais, dominando assim o processo estratégico de desenvolvimento destes protocolos que irão formatar a inter-relação via rede no século 21.

Neste cenário, imagino se seria possível a uma iniciativa pública, apoiada pelo estado mas governada de forma compartilhada com a sociedade, propor um protocolo básico extensível que viabilizasse a criação de uma plataforma pública aberta e comum.

Fico imaginando se algo como o Diáspora fosse adotado por um arranjo institucional como este. Seria possível alavancar um protocolo aberto e distribuído de identidade (open - user-centric - identity) como plataforma pública nacional?

E porque estou falando de open identity? Porque será através de um protocolo de identidade digital público e aberto, centrado nas demandas de privacidade e de direitos autorais dos usuários, que poderemos criar as bases da economia p2p. Entretanto, são estes os protocolos estratégicos que estão sendo apropriados e dominados pela visão de corporações norte-americanas. 

Estamos neste momento acompanhando a tramitação da proposta da nova lei de direito autoral. Nela está inserido dispositivo que orienta a criação da plataforma de registro autoral, que projeta o grande banco de referências e links de toda a cultura.br.

Ao mesmo tempo, estamos vivendo um processo intenso de digitalização das coleções históricas de arquivos, bibliotecas, cinematecas, centros de pesquisa. A catalogação e disponibilização integrada destes acervos, aliada a metadados que possam prever formas de licenciamento inovadoras, viabiliza um cenário onde é possível gerar novos fluxos de retribuição autoral.

E por outro lado, cada vez mais os cidadãos brasileiros se transformam em usuários especialistas destes ambientes de mídias sociais, onde hoje efetivamente são desenvolvidos as aplicações e serviços baseados em identidade. Tais aplicações são orientadas ao aperfeiçoamento das estratégias publicitárias que financiam estes empreendimentos, mas ainda sim, é nestes espaços que efetivamente ocorre a indicação, uso e reprocessamento de conteúdo digital nos dias de hoje.

Enxergo aqui uma oportunidade histórica de provermos uma solução tecnológica em condições de responder aos desafios dos novos paradigmas, o que muitos chamam de economia criativa, mas que independente do nome deve necessariamente prever e estimular os arranjos de compartilhamento e construção colaborativa do conhecimento.

Neste cenário, o foco não deve estar no controle dos fluxos criativos, e sim no reforço de atribuição da identidade dos criadores, que somos todos nós.

A tecnologia, especialmente na lógica dos padrões abertos e do software livre, tem resposta para estas demandas. Mas estas respostas, da forma como às precisamos, não serão desenvolvidas pelas corporações que se criaram neste processo de agregação e apropriação da contribuição ‘anônima’. 

Enfim: na cultura digital, “Programe ou seja Programado”, não é mesmo?

Será que ainda existe a possibilidade de uma alternativa a este cenário dominado pelos grandes players da Internet? Na minha opinião, o papel do CGI.br nesta reflexão é central.

Seguimos conversando.

sexta-feira, agosto 26, 2011

SNIIC: uma plataforma para o século 21


Na sociedade em rede, os dados produzidos pelos cidadãos, ou em seu nome, são a força motriz da economia e da nação — o governo tem a responsabilidade de tratar esta informação como precioso recurso nacional. Os cidadãos se conectam entre si pela rede hoje como nunca antes, e estão desenvolvendo as habilidades e o entusiasmo para resolver os problemas que os afetam localmente, assim como nacionalmente. No século 21, informações e serviços públicos podem estar disponíveis aos cidadãos onde e quando eles precisam. Mais do que nunca, os cidadãos estão desenvolvendo o poder de desencadear a inovação, que resultará em uma melhor abordagem para a governança. Neste modelo, o governo atua como organizador e facilitador, e não como o motor inicial da ação cívica.

Entendemos que a maneira correta de encaminhar uma estratégia moderna para a questão das aplicações e serviços públicos é através de uma plataforma aberta baseada no modelo ‘open data’ (dados abertos), que promova a inovação dentro e fora do governo. O desafio é desenvolver um sistema em que todos os resultados e possibilidades não sejam especificados de antemão, mas que evoluam através de interações entre o governo e seus cidadãos, da mesma forma em que os prestadores de serviços na web promovem a participação ativa de sua comunidade de usuários.

O SNIIC do Século 21: Dados Abertos e Participação Cidadã

Informações claras, confiáveis e atualizadas sobre o campo da Cultura são fundamentais para subsidiar tanto ao planejamento e às tomadas de decisão referentes às políticas públicas culturais, como também aos investimentos e ações dos setores privados. Por isso, o Ministério da Cultura, por meio da Secretaria de Políticas Culturais, está desenvolvendo o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC). O SNIIC, de criação obrigatória por lei, será um banco de dados de bens, serviços, infraestrutura, investimentos, produção, acesso, consumo, agentes, programas, instituições e gestão cultural, entre outros, e estará disponível para toda a sociedade.

Cabe ao Ministério da Cultura coordenar um processo de estruturação para os sistemas de informações locais, desde uma rede nacional. A partir das oportunidades que a formatação em rede implicam, o SNIIC visa a ser uma interface dinâmica e viva, que contribua para a produção, gestão e difusão da produção e da diversidade cultural brasileira. Dentro das novas estruturas de governança, o SNIIC será, também, um instrumento de transparência dos investimentos públicos no setor cultural, servindo como ferramenta de monitoramento e avaliação para os gestores e para toda a sociedade.

A novidade do SNIIC proposta pelo MinC está em unir o arcabouço técnico da web semântica e dos arranjos de transparência fundamentados no modelo ‘open data’ (dados abertos), com as potencialidades da participação direta da sociedade civil através de interfaces típicas das mídias sociais. Trata-se de qualificar o uso dos dados públicos pelos cidadãos interessados, e implementar ambientes e padrões que incentivem o desenvolvimento distribuído de aplicações e serviços, criados a partir de demandas locais. A estratégia é focar no design da participação buscando soluções simples, mínimas, que possam evoluir com a colaboração direta dos interessados. É o ‘governo como plataforma’.

Governo como plataforma

Os governos produzem quantidades impressionantes de dados, seja através de órgãos de pesquisa ou no decorrer de suas atividades. Estes dados em teoria são abertos para uso público nos regimes democráticos. Mas a utilização destes dados em aplicações e serviços não tem acontecido como desejado, uma vez que em sua maioria estes dados estão em formatos pouco amigáveis ou não estruturados para utilização em aplicações.

Quando estudamos um pouco mais o cenário não é difícil perceber que, mesmo quando os dados produzidos pelo governo estão disponibilizados em formatos adequados, ainda assim sentimos a ausência de elementos facilitadores ao desejável processo de apropriação do potencial destas informações pela sociedade. É neste espaço, na interface entre os dados públicos e o cidadão brasileiro do século 21, que enxergamos a oportunidade de aplicação do conceito do ‘governo como plataforma’, que orienta a concepção e implementação do SNIIC.

Esta visão parte do princípio de que, projetos que promovam a disponibilização inteligente de dados abertos e estruturados podem alavancar a inovação e posicionar o governo para realizar importante papel no surgimento de novos empreendimentos e modelos de negócio no ambiente digital. Estas novas aplicações e serviços, construídos a partir de protocolos e padrões de disponibilização abertos, poderiam ajudar as pessoas a acompanhar de maneira mais efetiva como estão sendo utilizados os recursos do estado, e promover a participação cidadã no curso das políticas públicas do país, dos estados e das cidades.

Além disso, o modelo ‘governo como plataforma’ contempla uma dimensão que consideramos estratégica. Neste cenário, o estado pode também se posicionar como facilitador no processo de captação e organização dos dados do setor privado para o uso público. O modelo contempla, por exemplo, como companhias de telefonia, energia e transportes, que em boa parte de suas atividades dependem de concessões do estado, poderiam servir como fonte de dados para inúmeras aplicações que poderiam ajudar o dia a dia da população, além de gerar novas oportunidades de negócios e empregos. 

Em nossa avaliação, esta perspectiva aplicada ao campo da cultura oferece cenários ainda mais promissores. Tomando como exemplo o fato de que o SNIIC irá disponibilizar informações sobre os equipamentos culturais existentes no país, podemos facilmente imaginar que os dados dinâmicos de programação destes espaços poderiam ser fornecidos pelos interessados (produtores, gestores, cidadãos interessados, etc.), e disponibilizados em diferentes serviços que teriam como fonte a base de dados organizada e pronta para oferecer as informações em padrões e protocolos abertos. De onde enxergamos, esta seria apenas uma das dimensões possíveis de exploração no contexto do novo SNIIC.


Tipologia e Arquitetura de Informação para o SNIIC

Quando nos dispomos a implementar um sistema que pretende organizar as informações referentes ao universo da cultura de um país, o primeiro grande desafio a enfrentar é o consenso em torno de uma tipologia. O acordo em torno da lógica de classificação das informações é fundamental, pois a partir desta definição é que se torna possível desenvolver séries históricas para os dados coletados, viabilizando as comparações e os indicadores necessários para a construção e o monitoramento da implementação das políticas públicas. 

Como em nosso caso o país em questão é o Brasil, eu diria que acrescentamos ao processo de definição de uma tipologia de cultura dois elementos locais peculiares. Por um lado, a imensa e dinâmica diversidade cultural brasileira, e por outro, o fato de que todos nós desenvolvemos opiniões diversas sobre cultura, e cultivamos a tendência nativa de externar esta diversidade de pontos de vista regularmente em nosso dia-a-dia. Ou seja, constitui tremendo desafio definir uma tipologia que contemple a diversidade cultura brasileira, e ao mesmo tempo possa orientar as demandas de organização e classificação de dados de um sistema informatizado.

Para enfrentar este desafio, estamos buscando compatibilizar as demandas estruturais do sistema com um processo dinâmico de implementação da arquitetura de informação. Neste sentido, consideramos fundamental compartilhar com os interessados a proposta inicial de ‘Árvore Temática’ (abaixo), de acordo com os conceitos que orientam os processos colaborativos típicos do desenvolvimento em software livre (“release early, release often” – publique logo, publique sempre).

 

Abertura, transparência e arranjos colaborativos que fomentem a participação de todos os interessados, nos parece elementos fundamentais para a construção de um projeto com esta envergadura. Nada menos do que isso pode viabilizar a realização de um Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais – SNIIC, concebido para ser pautado pelos conceitos de ‘Dados Abertos’ e ‘Participação Cidadã’.

quinta-feira, julho 28, 2011

De como as comunidades P2P irão mudar o mundo - Entrevista com Michel Bauwens, criador da P2P Foundation



Muitos de vocês, ao ouvir as palavras "peer to peer", rapidamente se lembram do eMule ou do Napster, e da variedade de tecnologias e soluções para compartilhamento de arquivos que permitem a livre troca de conteúdos de qualquer tipo, assim como dos problemas associados e das controvérsias relacionadas à proteção dos direitos de autor.

Na verdade o termo P2P refere-se, desde há muito tempo, a um amplo espectro de soluções, paradigmas e abordagens centradas no co-design (design colaborativo) e na co-criação, na abertura (openness) e na liberdade: ou seja, estamos falando de cada meio (ferramenta) descentralizado, compartilhado e igualitário, utilizado para fornecer soluções livres e abertas para problemas comuns.

Tecnologias e plataformas tecnológicas (e o software em particular) são portanto, apenas um dos muitos aspectos desse movimento, o qual não impõe a si qualquer limite em sua abrangência: a meta de longo prazo é facilitar o surgimento e a consolidação de comunidades de pares (p2p) desenhadas para operar um novo papel na sociedade, o qual sempre foi prerrogativa de empresas e indústrias, de acordo com o modelo de produção capitalista de bens e serviços.

O modelo de produção entre pares está completamente em oposição ao neoliberalismo, mas é importante destacar que os processos P2P apresentam a capacidade de transformar, mas também de adaptar-se às estruturas sociais existentes. Esta síntese é talvez a única saída para os problemas históricos que a humanidade está enfrentando estes dias.

Plataformas e paradigmas abertos, igualitários e participativos, capazes de colocar as pessoas em contato direto entre si, demonstraram um enorme potencial nos últimos anos: com a missão de ajudar a outras alternativas p2p emergir e se consolidar, a "Fundação para Alternativas P2P" foi fundada por Michel Bauwens anos atrás.

Michel é um fantástico orador, pesquisador, analista e escritor: a pessoa ideal para nos ajudar a investigar os impactos que estas potenciais mudanças, especialmente as que são apresentadas nesta entrevista, podem vir a ter no futuro.


[Simone Cicero]: Qual é o papel do movimento p2p no mundo hoje? Qual o nível de adoção esse paradigma alcançou até agora?

[Michel Bauwens]: A minha resposta é que o movimento p2p tem um papel histórico muito importante a desempenhar, mas que é bastante difícil quantificar isso. Primeiro, o que queremos dizer quando falamos de um movimento p2p? O conjunto de causas subjacentes está ligado à horizontalização das relações humanas que é viabilizada pelas tecnologias p2p, entendida no sentido amplo de permitir a agregação de indivíduos livres em torno de valores compartilhados ou na criação de valor comum. Este é, naturalmente, uma grande mudança social.

Poderíamos argumentar que uma emergente vanguarda sócio-cultural está ativamente construindo novas formas de vida, novas práticas sociais e novas instituições humanas, algumas das quais eu tentei mapear aqui. Em todo o mundo estamos vendo emergir comunidades que estão desenvolvendo novas práticas sociais que são informadas pelo paradigma p2p. Em um outro nível esta é também uma revolução ética, que registra (1) o crescimento de valores fundamentais tais como abertura (openness, a qualidade de ser aberto) e liberdade em relação às 'entradas' (inputs) compartilhadas em processos de produção entre pares; (2) participação e inclusividade como elementos básicos do processo de cooperação; e (3) uma orientação ao 'commons' (distribuição universal) na gestão das saídas (outputs) do processo. Economicamente, por exemplo, um estudo recente estimou que o setor de conteúdo aberto nos EUA iria alcançar um sexto do PIB.

Finalmente, existem as novas expressões políticas. Eu considero as praças ocupadas na Europa como expressões desta emergente mentalidade p2p. Você poderia dizer que o movimento tem duas alas, uma ala construtiva de pessoas desenvolvendo novos instrumentos e práticas, como por exemplo descrito no livro de Chris Carlsson, 'Nowtopia', e uma ala mais ativa de resistência ao neoliberalismo, que está buscando formular novas maneiras de conceber as mudanças sociais, e que não são cópias carbono das abordagens da velha esquerda. No entanto, é importante ressaltar que este movimento está ainda em uma fase precoce de emergência, e não em nível de paridade com o mundo neoliberal mainstream.


[SC]: Como a produção p2p (colaborativa) é diferente do consumo colaborativo? Deveriam esses dois lados, produção e consumo, coexistir?

[MB]: É uma boa pergunta. A diferença está relacionada com a dificuldade de se implementar soluções p2p completas no atual sistema dominante. O arranjo para o consumo colaborativo é mais simples, e pode ser organizado por empresas que se encarregam da infra-estrutura do sistema que gerencia a aquisição coletiva do produto-serviço, que podem então investir em uma infra-estrutura compartilhada ou desenvolver uma plataforma para compartilhar o que já está disponível -- o que poderia ser feito por comunidades ou organizações sem fins lucrativos.

No caso da produção, a colaboração pode acontecer sem muita dificuldade na esfera imaterial do conhecimento, do código e do design, mas encontra muitos problemas no momento que tentamos traduzir em produção física, o que é caro. Nesta etapa, há uma co-dependência entre os pares produtores que estão criando valor, e as empresas com fins lucrativos que estão 'capturando esse valor', mas ambos precisam um do outro. Pares produtores precisam de uma ecologia de negócios para assegurar a reprodução social do seu sistema e a sustentabilidade financeira de seus participantes, e o capital precisa das externalidades positivas e da cooperação social que fluem da colaboração p2p.

A minha proposta é de que as comunidades de pares produtores devem criar seus próprios empreendimentos sociais com "missão orientada", de forma que a mais-valia possa permanecer com os criadores de valor, isto é, com os plebeus ('commoners') em si -- mas isso dificilmente aconteceria agora. Em vez disso o que vemos é uma adaptação mútua entre o capital netárquico (netarchical capital) de um lado, e as comunidades de pares produtores do outro. Onde o horizontal encontra o vertical, surgem muitas adaptações diagonais híbridas.

A questão crucial se torna então: "como é que vamos adaptar", quando é que a adaptação pode se tornar cooptação, se não pior, exploração pura. Pode-se dizer que esta é a luta de classes do século 21, entre as duas classes emergentes, que na minha opinião, serão os principais fatores na transição para um novo tipo de sociedade. Para os pares produtores a questão torna-se, se não podemos criar nossas próprias instituições totalmente autônomas, então como podemos adaptar, mantendo o máximo de autonomia e sustentabilidade como um bem comum, e como uma comunidade.

[SC]: Por que o paradigma p2p foi incapaz de criar alternativas bem sucedidas em algumas áreas? Por exemplo, no caso das redes sociais, iniciativas como o diáspora têm sido marginais até agora, e quedamos contando com entidades comerciais, por vezes corporações multinacionais, para empoderar a comunidade de pares a realizar grandes coisas (por exemplo, os movimentos no oriente médio). Existe um problema aqui? Quero dizer, em terceiro lugar: as entidades comerciais operando enormes comunidades de pares que criam valor, não lhes permite realizar lucros enormes?

[MB]: Na produção por pares orientada ao commons, onde as pessoas se agregam em torno de um objeto comum (o que requer uma profunda cooperação), eles costumam ter as suas próprias infra-estruturas de colaboração, contemplando uma ecologia que integra uma comunidade, uma associação com missão-orientada (for-benefit) para a gestão da infra-estrutura, e empresas orientadas ao lucro que operam diretamente no mercado; na economia de partilha, onde os indivíduos simplesmente compartilham suas próprias expressões, ser hospedado em plataformas de terceiros é a norma.

É claro que empresas com fins lucrativos têm prioridades diferentes, e desejam capturar o valor gerado para que este possa ser vendido no mercado. Esta é, na verdade, a luta de classes da era p2p, a luta entre comunidades e corporações em torno de questões diversas, em parte por causa de diferentes interesses. Assim, esta tensão é certamente um problema, mas como o exemplo colocado por você indica, não se trata de um obstáculo crucial. Mesmo plataformas comercialmente controladas estão sendo usadas para promover uma grande horizontalização e auto-agregação das relações humanas, e as comunidades, incluindo grupos políticos radicais, estão utilizando-as efetivamente para se organizar.

O importante é não se concentrar apenas sobre as limitações e as intenções dos donos da plataforma, mas usar o que pudermos para reforçar a autonomia das comunidades de pares. Às vezes, isso requer uma adaptação inteligente a seja lá o que for que o status quo já está produzindo. Questões importantes: quais meios 'imperfeitos' podemos usar para nosso próprio benefício; quais infra-estruturas precisam de fato tornar-se independentes de controle, e o que precisamos exigir dos proprietários das plataformas que 'exploram' o trabalho livre sem dar nada em troca. Por exemplo, o Fórum da Cultura Livre exige uma participação de 15% na receita gerada, a fim de sustentar os seus plebeus criativos.

O fato hoje é que o capital ainda é capaz de agregar vastos recursos financeiros e materiais, o que o torna capaz de gerar coisas como o Google, o YouTube, o Facebook, etc ... plataformas que podem facilmente e rapidamente oferecer serviços, criando efeitos de rede que são muito difíceis, embora não teoricamente impossíveis, de serem emulados por arranjos p2p "puros", que podem não ter a mesma facilidade de acesso aos recursos atraídos de forma rápida e eficiente pela mecânica do capital. O problema com o diáspora é que, sem os efeitos de rede, não há nenhum "lá" lá, apenas uma vazia plataforma em potencial. Se você quiser alcançar as pessoas, você ainda precisa estar onde eles efetivamente estão, ou seja, nas plataformas mainstream.

Entretanto, ativistas p2p devem funcionar em ambas as frentes, ou seja, utilizando plataformas mainstream para espalhar suas idéias e sua cultura de forma a atingir um maior número de pessoas, e ao mesmo tempo, desenvolvendo suas próprias ecologias de mídia autônoma, que podem operar de forma independente. O importante é manter um compromisso com o longo prazo, ou seja, com a construção lenta e cuidadosa de uma infra-estrutura alternativa para a vida.


[SC]: O bem comum (commons) é o real campo de aplicação do paradigma p2p, ou podemos pensar no p2p também sendo usado como um modelo potencial para aplicações de lucro?

[MB]: O commons e o p2p são apenas aspectos diferentes do mesmo fenômeno, o commons é o objeto que a dinâmica p2p está construindo, e o p2p ocorre onde há bens comuns. Lembre-se, eu não uso o termo p2p em um sentido puramente tecnológico, mas em um sentido sociológico, como um tipo de relacionamento. Portanto, tanto o p2p como o commons, como eles criam valor abundante (digital) ou suficiente (material) para os 'commoners' (os pares), estão em condições de, ao mesmo tempo, gerar oportunidades para criação de valor agregado para o mercado. Não há nenhum domínio que esteja excluído do p2p, nenhum campo que possa afirmar que "não seria mais forte através da abertura para a dinâmica da participação e da comunidade". E não há nenhuma comunidade p2p que hoje possa dizer: "estamos a longo prazo totalmente sustentável dentro do atual sistema, sem necessidade de recursos extras provenientes do mercado".


[SC]: Poderia a adoção de moedas p2p como Bitcoin facilitar a fusão de sistemas de produção de valor p2p com esquemas comerciais / do mercado?

[MB]: Temos que ter cuidado aqui. Uma tendência identificável é a difusão atual de infra-estruturas e arranjos, ou seja, a introdução de crowdsourcing, crowdfunding, empréstimo social, moedas digitais, ferramentas que promovem uma participação mais ampla do paradigma p2p nas práticas atuais. Isso é uma coisa boa, mas não suficiente. Todas as coisas que eu mencionei acima imprimem um movimento em direção de uma infra-estrutura distribuída, mas não alteram a lógica fundamental de que eles estão fazendo. No caso do bitcoin, trata-se de uma moeda que funciona com base em escassez, sujeita às mesmas forças especulativas que operam nos metais raros, e portanto totalmente sintonizada na lógica do capital, assim como os sites de empréstimos sociais etc... O que realmente precisamos é de uma segunda onda de infra-estruturas de distribuição, que também possam incorporar novos valores éticos. Bitcoin poderia funcionar com demurrage por exemplo, ou no contexto de um crédito do commons. Empréstimos sociais poderiam ser usados para investimento de "dinheiro lento" em empreendimentos éticas ou comunidades. Sem isso, nós estamos falando da distribuição do capitalismo, e não sobre uma mudança mais profunda na lógica da nossa economia.


[SC]: Nós, mais e mais vezes, vemos soluções p2p criar atalhos onde os sistemas comerciais não funcionam ou não são suficientemente eficientes ou, simplesmente, são caro (às vezes exageradamente): como empresas à moda antiga poderiam adaptar-se ao p2p para evitar a sua desatualização, e a sua superação por alternativas baseadas em p2p?

[MB]: Não importa o quanto você é bom, não importa o quanto de capital você tem para contratar as melhores pessoas, você não pode competir com o potencial de inovação das comunidades abertas globais. É isso que impulsiona todos os negócios a se adaptarem, de uma forma ou de outra, à dinâmica p2p. Como uma empresa, você tem mais inovação, uma articulação mais profunda nas redes, estruturas de custo mais baixo, e muitas outras vantagens competitivas. Mas tudo isso vem com um preço, ou seja, a necessária adaptação às regras e normas da nova cultura em rede, e às comunidades em particular nas quais você está trabalhando. E o oposto também está acontecendo, como descrevemos acima, mais e mais comunidades orientadas para o bem comum (commons-oriented) estão criando suas próprias coligações empresariais. É claro, certo tipo de empresas, por causa de suas posições de monopólio e de seus sistemas legados, terão um período muito difícil nesta adaptação, o que cria o cenário para que novos players apareçam em condições de responder de forma mais efetiva.


[SC]: É necessário um "novo tipo de empresa" para incorporar o modelo de produção p2p, ou um novo tipo de "comunidade" para incorporar os aspectos comerciais, o lucro?

[MB]: Com certeza, o modelo corporativo é incapaz de lidar com as questões ecológicas e de sustentabilidade, porque o seu próprio DNA, a obrigação de legal de enriquecer os acionistas, o faz se esforçar para reduzir os custos de entrada, e ignorar as externalidades. Para uma empresa com fins lucrativos, o que é legal é ético, e a regulação externa pode apenas moderar tais comportamentos. Isto significa que "regulação" também deve ser interna, e para isso, precisamos de novas estruturas corporativas, um novo tipo de entidade do mercado para o qual o lucro é um meio, mas não um fim, dedicado a um "benefício", uma missão, ou ao sustento de uma determinada comunidade e / ou commons. Seguindo lasindias.net, eu uso o conceito de phyles. e a própria Fundação P2P criou como que uma cooperativa global que visa tornar o trabalho no commons do conhecimento P2P sustentável. Estas novas entidades devem se tornar o núcleo de um novo setor privado, e que são estruturalmente inerentemente sustentável.


[SC]: Há uma ligação especial entre a crise de recursos, a alta do petróleo, e os temas de sustentabilidade em geral, com o movimento p2p? Sustentabilidade seria um atributo substancial dos sistemas p2p, coletivos, descentralizados?

[MB]: Eu costumo argumentar fortemente sobre este link. Na minha opinião, empresas com fins lucrativos são inerentemente não-sustentáveis em seu DNA, porque dependem de escassez, ou seja, a abundância destrói a escassez e, portanto, abala os mercados; um exemplo de prática perniciosa em particular é a obsolescência planejada. Mas uma comunidade aberta de design, por exemplo, não funciona com base nesses incentivos perversos, e naturalmente desenvolverá projetos voltados para a sustentabilidade. Tais coletivos irão desenvolver projetos voltados para a inclusão, de forma a permitir que outros possam adicionar novos elementos ao projeto e, finalmente, também irão desenvolver formas mais distribuídas de fabricação, que não necessitem de centralização financeira e geográfica.

A E-cars por exemplo, produz projetos abertos para carros híbridos, de modo que qualquer mecânico no mundo pode fazer o download do projeto e trabalho em seu carro localmente. O 'Common Car' é projetado modularmente, com uma pele biodegradável que pode ser trocada sem a necessidade de um carro novo completo. Isto significa que os empresários, agregando-se para abrir projetos de design colaborativo, começariam a trabalhar a partir de um espaço totalmente diferente, mesmo que eles ainda utilizem a forma clássica de empresa. Evitar o compartilhamento de projetos de sustentabilidade por meio de monopólios de propriedade intelectual também é, na minha opinião, antiético, e a existência de tais patentes deveria ser pautada por uma perspectiva minimalista, jamais por uma lógica maximalista.


[SC]: Como é o seu sentimento hoje sobre as perspectivas "high road" e "low road"?

[MB]: O cenário "high road" propõe um governo esclarecido, que "promove e empodera" a produção social e a criação de valor, e permite uma transição mais suave para os modelos p2p; o cenário "low road" é aquele em que nenhuma reformas estrutural acontece, a situação global desemboca em diferentes formas de caos, e o p2p torna-se uma tática de sobrevivência e resistência para enfrentar as extremamente difíceis circunstâncias sociais, políticas e econômicas que virão. O problema hoje é que os movimentos sociais são demasiado fracos para impor reformas estruturais, apesar de que esta situação poderia mudar e está mudando enquanto nós falamos aqui, veja as mobilizações nas praças europeias. O outro aspecto importante é que o clássico ciclo econômico de 60 anos, conhecido como "onda Kondratieff", se encerra com o colapso de 2008, o que é agravado pela crise da biosfera e outros (alterações climáticas, a sexta grande extinção, o pico do petróleo), que na minha opinião configuram sinais do declínio acelerado do capitalismo. Apesar de estar confiante de que o modelo de crescimento infinito está se aproximando do fim, isso não significa, naturalmente, que o que vai substitui-lo será melhor. Trabalhar para construir uma alternativa melhor é realmente a tarefa histórica do movimento p2p. Em outras palavras, depende de nós!


[SC]: Quais são as próximos aplicações potencialmente revolucionárias do modelo P2P?

[MB]: Eu realmente não penso em termos de avanços ou revoluções tecnológicas, porque a platafroma fundamental, a rede global de inteligência coletiva viabilizada pela internet, já existe entre nós. Esta é a grande mudança, e todos os outros avanços tecnológicos serão informados por esta nova realidade social caracterizada pela horizontalização de nossa civilização. O importante agora é defender e ampliar nossos direitos de comunicação e organização, mobilizando-nos contra as tentativas concertadas para voltar o relógio. Enquanto posso afirmar que voltar no tempo é realmente uma impossibilidade, isso não significa que as tentativas de governos e grandes corporações sejam incapazes de criar grandes danos e dificuldades.

Precisamos de tecnologia p2p para viabilizar o desenvolvimento de soluções globais para as crises sistêmicas que estamos enfrentando. Retardar este processo, de fato, põe em risco o futuro da Terra e da humanidade. Estamos vivendo em um sistema bio-pático, que literalmente destrói a base da vida humana e natural; e o p2p é necessário para assegurar a transição para uma civilização biofílica, o que pode garante a continuidade do nosso habitat natural e de suas dádivas para a humanidade. A tecnologia é apenas uma ferramenta, embora muito importante, para a transformação, mas devemos evitar qualquer determinismo tecnológico, bem como as utopias equivocadas que ficam a depender do próximo grande avanço mágico da tecnologia.

terça-feira, maio 10, 2011

Em busca de um modelo de desenvolvimento aberto e distribuído em software livre para o governo


Em 2003 o Governo Federal iniciou um forte movimento de adoção do software livre como diretriz política e tecnológica. Nesse mesmo período o Ministério da Cultura passou a pautar o software livre em seus programas e projetos, com destaque ao Programa Cultura Viva, em que a Ação Cultura Digital promoveu a distribuição de Kits Multimídia com aplicações específicas -- edição digital de áudio e vídeo -- em software livre para os Pontos de Cultura.

Desde então, o MinC realizou alguns investimentos no desenvolvimento e suporte ao uso de software livre no mundo da cultura. Uma das iniciativas que merece destaque é o projeto Estúdio Livre, que através de bolsas de pesquisa para diversos profissionais, entre 2005 e 2007, gerou documentação e capacitação para a produção e distribuição de mídia criada com software livre. No entanto, dentre essas bolsas, não havia recursos suficientes para investir no desenvolvimento e aperfeiçoamento destes softwares.

Nos demais setores de governo, a demanda por aplicações típicas da administração federal potencializou o compartilhamento de plataformas comuns entre as instituições governamentais, e favoreceu o incentivo a comunidades de desenvolvimento baseadas nas áreas de TI dos órgãos parceiros, fomentando também a interação com parceiros comerciais que foram motivados a compartilhar o código. Tal dinâmica alavancou o sucesso do Portal do Software Público, que desempenha papel estratégico na disseminação do uso de aplicações livres nas diversas esferas de governo.

Entretanto, o desenvolvimento das aplicações livres específicas demandadas pelo mundo da cultura não se encaixam tão bem neste arranjo intra-governo. Penso que isto se dá pelo fato da inovação neste setor emergir da confluência entre a arte e a tecnologia, no diálogo natural entre as práticas e as linguagens que surgem em meio às novas formas de conceber, produzir e distribuir cultura. Tal configuração a meu ver determina o caráter distribuído e aberto que o apoio a este tipo específico de desenvolvimento deve incorporar.

Enquanto isso, nos pontos de cultura, o descompasso entre as demandas de uso das aplicações livres do kit multimídia, e a evolução das mesmas frente às alternativas em software proprietário, gerou o que podemos chamar de um atrativo perverso ao uso de programas piratas. Se partimos do princípio de que o uso de software livre constitui elemento estruturante da implementação dos Pontos de Cultura, torna-se evidente que para o sucesso da política é fundamental uma preocupação especial com a qualificação das ferramentas livres disponibilizadas aos contemplados.


Em 2009, no âmbito do processo do Fórum da Cultura Digital Brasileira, a necessidade de apoio ao desenvolvimento de softwares livres, especialmente aplicações para produção e distribuição de mídia, foi uma das principais demandas apontadas pela sociedade como forma de garantir a plena disseminação e uso dos softwares livres por parte de artistas e profissionais da área da cultura. Esta demanda emerge naturalmente da compreensão estratégica sobre a importância que o software adquire em um mundo mediado pelas interfaces digitais, e em minha visão configura resultado direto do exercício de apropriação tecnológica qualificada promovida pelo movimento dos pontos de cultura.

Em resposta a esta demanda o Ministério da Cultura, através da sua Coordenação de Cultura Digital, inaugurou na edição de 2010 do Forum Internacional de Software Livre (FISL) uma série de discussões junto às comunidades de desenvolvimento. O objetivo foi convocar o setor para auxiliar na formulação de um Programa de Apoio ao Desenvolvimento Aberto e Distribuído de Softwares Livres, com foco preferencial nos softwares de produção multimídia utilizados por produtores culturais e pontos de cultura.

Em paralelo, realizamos uma série de consultas junto à Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para avaliar modelos institucionais que contemplassem o apoio governamental às comunidades de desenvolvimento de software. Exploramos a possibilidade de se coordenar a evolução das aplicações e a produção de código de forma distribuída através de plataformas colaborativas abertas, que poderiam operar diretamente a relação com os desenvolvedores através de micro-pagamentos por empreitada (bounties).

Software Livre não é um projeto, grupo ou comunidade. Trata-se de um conceito para o desenvolvimento de tecnologia, o qual evoca a inovação nas dinâmicas produtivas e nos modelos de negócio. A partir da demanda do Fórum da Cultura Digital, e face à postura arrojada do ministério em fomentar a reflexão sobre os arranjos econômicos da cultura colaborativa, entendemos que cabia ao MinC o papel de alavancar a atuação do Governo para legitimar e apoiar essas novas dinâmicas.

Como resultado de toda esta reflexão, e após algumas consultas internas sobre a melhor forma de encaminhar um projeto com tal especificidade, fomos aconselhados pela Consultoria Jurídica do ministério a buscar a parceria com uma universidade. Ao final do ano de 2010, o plano foi desenhado contemplando 2 dimensões, ou eixos: (1) a prospecção de elementos que auxiliem a administração pública a encontrar mecanismos de contratação, gestão e monitoramento / avaliação de projetos de desenvolvimento desta natureza, e (2) a realização de editais que implementem os mecanismos prospectados, efetivamente fomentando o desenvolvimento e a melhoria dos softwares culturais livres. Tais editais seriam então avaliados com o objetivo de identificar as boas práticas e assim evoluir o modelo.

Foi então que em nome da Secretaria de Políticas Culturais do MinC realizei contato com a Universidade Federal do ABC, representada na pessoa do Prof. Sergio Amadeu, sondando a possibilidade do projeto tornar-se objeto de um termo de cooperação entre as instituições. Com reconhecida experiência em questões que envolvem a implementação de software livre em governos, e estando agora à frente de um departamento acadêmico voltado para a reflexão sobre os desafios que estes novos arranjos econômicos engendram, o Prof. Amadeu mostrou-se parceiro qualificado para a empreitada. Sua reputação no tema, não por acaso, encontra-se extensivamente documentada neste blog.

Devido às circunstâncias típicas dos períodos de fim de ano nos órgãos federais, e acrescido o fato de que se tratava de uma temporada de pré-transição de governo, ocorreu um atraso no encaminhamento dos trâmites de formalização da parceria. No dia 31/12/2010 foi enfim publicado no DOU o extrato do Termo de Cooperação n° 006/2010, firmado entre o MinC e a UFABC -- para alegria de todos os que trabalharam arduamente para que esta iniciativa inovadora sobrevivesse aos difíceis caminhos da burocracia estatal.

Desde então, minha tarefa tem sido explicar o contexto do projeto para os integrantes da nova gestão do MinC, demonstrando a importância da iniciativa neste momento de ampla reformulação dos arranjos criativos e econômicos no campo da cultura. Não à toa, o projeto despertou o interesse da nova Secretaria de Economia Criativa, além de ter sido bem apreciado quando apresentado em detalhe ao Secretário Executivo Vitor Ortiz e mais recentemente à Ministra Ana de Hollanda.

O problema concreto para a efetivação do Termo de Cooperação hoje se resume às limitações orçamentárias impostas aos órgãos do executivo neste ano atípico, o que demandará mais criatividade e dinamismo por parte do MinC e da UFABC para a realização das metas. Confio que a pertinência e propriedade da iniciativa tenha condições de atrair outros parceiros de governo em condições de apoiar o projeto, e neste sentido estamos já conversando com os ministérios das Comunicações, da Ciência e Tecnologia, e em breve retomaremos o contato com o MEC.


O momento é de retomada pós-transição, e na perspectiva da comunicação sobre projetos de interesse público, é fundamental termos a boa vontade de explicar exaustivamente as premissas que orientaram as políticas. Especialmente quando tratamos do digital e suas implicações para o mundo da cultura, há de se levar em conta o efeito da aceleração, da velocidade com que alguns paradigmas estão sendo impactados por acontecimentos típicos do dia-a-dia no século 21. É natural a ansiedade vivenciada por alguns setores da sociedade que se vêem ameaçados por futuros incertos, indecifráveis.

Vivemos um cenário em que o grau de compreensão sobre os diferentes aspectos das transformações trazidas pelo digital se mostra por demais heterogêneo. Neste contexto, onde o diálogo entre grupos com pouca afinidade e / ou convivência é dificultado, é sempre bom privilegiar a atenção às possíveis identidades, ao invés de exacerbarmos polêmicas em torno às naturais diferenças. Esta atitude positiva tem como fundamentos o respeito e a confiança, que constituem valores elementares para uma boa e civilizada conduta na ecologia digital.


Atualização (20/08/2011): Devido às dificuldades de efetivação do Termo de Cooperação acima mencionado, o projeto será retomado em novas bases à partir de entendimentos em curso com o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).

terça-feira, fevereiro 01, 2011

#Egito: é a cultura digital, estúpido!!

@tomgara recebeu esta imagem em um e-mail de um amigo no egito

Escutava esta manhã à AlJazeera, via rádio web (ootunes no iPhone), acompanhando relatos ao vivo direto da Tahir Square no Cairo, capital do Egito, onde mais de 1 milhão de pessoas se aglomeravam para pedir a queda de Mubarak -- o ditador há 30 anos no poder. A ótima locutora destacava a singularidade desta revolução popular: o movimento não apresenta qualquer líderança em condições de representatividade. Com o vigoroso som dos manifestantes na praça ao fundo, cantando palavras de ordem contra o regime, a emocionada jornalista narrava a urgente necessidade de interlocutores que neste momento estejam em condições de representar o movimento oposicionista nos diálogos urgentes e necessários para a solução do impasse politico.

Devo dizer que estou fascinado com o desenrolar dos fatos no Egito, e grato pela oportunidade de acompanhar tudo tão "de perto". Twitter e AlJazeera são os principais canais, mas é muito interessante também olhar a cobertura da CNN, da BBC e até a da Globo, e assim observar as nuances narrativas, revelando os interesses geopolíticos em jogo. É sem dúvida um evento histórico de grandes proporções, que certamente irá causar grande impactos no ecossistema global de mídia. De onde enxergo, diria que se trata de um evento típico da era da cultura digital. Mas há controvérsias...

Na manhã da última sexta-feira (28/01), quando o mundo descobriu que o Egito havia sido 'desplugado' da rede mundial, eu acompanhava pela AlJazeera (e por tweets) os relatos das manifestações de rua no Cairo. Havia grande ênfase da cobertura sobre a juventude dos manifestantes, e de como a censura à rede naquele momento parecia acirrar os ânimos. Foi então que, no clima do norte da África, twitei: "Se o gov derruba a Internet, derrubemos o gov!!". Para minha surpresa, o que considerei uma provocação pertinente para o momento, virou Top Tweet e está sendo retuitado até hoje. Gerou conversas, como abaixo.

Foi o primeiro sinal de que havia uma polêmica em curso na rede sobre o 'real' papel e importância da Internet -- ou de suas principais marcas como Google, Facebook, Twitter, etc. -- nas revoluções egípcia e tunisina. Percebi também que eu inadvertidamente (e TopTweetadamente) havia tomado o lado dos ciber-utópicos. Obviamente, o momento é propício para a velha mídia 'requentar' oposições clássicas como a contenda Gladwell X Shirky, e parece sob medida para o lançamento do livro do Evgeny Morozov: "Net Delusion: How not to liberate the world". O autor, que vem encarnando o necessário personagem midiático do "caçador das ciber-utopias", é velho conhecido da comunidade Global Voices. Eu mesmo o encontrei no GVSummit 2008 em Budapeste, e desde então passei a acompanhar as trocas entre Morozov e o colega David Sasaki na rede. Um trecho de David me parece ilustrativo:

"Em abril de 2007, quando sua corrente sanguínea estava ainda contaminada com algumas gotas de idealismo, ele (Evgeny Morozov) escreveu um artigo que argumentava ser a internet a nova fronteira do ativismo pelos direitos humanos (que ótimo para ele que o artigo está fechado em uma área só para assinantes).

Mas então Evgeny corretamente aprendeu que você não ganha muita grana e nem muita atenção quando trabalha para o progresso social. Se você quer dinheiro e fama, é melhor reclamar sobre o que está errado do que trabalhar para torná-lo certo. (Muitos pundits da web e 'pesquisadores da internet' descobriram esta verdade.)

...uma (pequena) parte de mim sempre saúda Evgeny quando ele denuncia a birutice nas manchetes do tipo "a revolução será twitada", mas assim como vocês, penso que a melhor coisa a fazer é descobrir o que funciona, o que não funciona, e seguir em frente."

Ballot Fraud, the Blogosphere, and Fame-Seeking Intellectuals in Russia - El Oso (26/10/2009)

Não é minha intenção dar seguimento à polêmica(s). Compreendo o papel que o debate estilo FlaXFlu desempenha na mídia tradicional, mas de fato vejo-o como algo estéril e pouco esclarecedor. Gostaria de chamar a atenção para o que considero relevante. Ou seja, a singularidade histórica deste movimento popular que está à ponto de derrubar um dos regimes mais sólidos e duradouros no mundo, que inclusive conta com respaldo do 'império' -- este movimento simplesmente não apresenta nenhuma liderança constituída. Trata-se de uma articulação emergente descentralizada, que obviamente explorou aplicações específicas de difusão e interação em rede, e por isso o considero como um evento típico da cultura digital. Um artigo no NYTimes apresenta alguns dados interessantes:

"A maioria de nós tem menos de 30," disse Amr Ezz, um advogado de 27 anos que faz parte do grupo April 6 Youth Movement, que organizou um dos primeiros dias de protestos na semana passada via Facebook. Eles ficaram surpresos e maravilhados em ver que mais de 90 mil pessoas assinaram online para participar, assim encorajando outros a comparecer e trazendo dezenas de milhares de jovens para as ruas.

Surpreendidos pelo sucesso da mobilização, os líderes mais velhos, que representam os diferentes setores da oposição -- incluindo os proscritos da "Muslim Brotherhood"; o grupo liberal de protesto "Egyptian Movement for Change", conhecido por seu slogan “Enough”; e o grupo guarda-chuva organizado pelo Dr. ElBaradei (prêmio Nobel) -- se juntaram, prometendo reunir seus apoiadores para outro dia de protestos. Mas foi o mesmo punhado de jovens articuladores online quem continuou dando as cartas.

Protest's Old Guard Falls In Behind the Young - NYTimes

Revolução Facebook? Menos...

Facebook e twitter são elementos que compõem a cultura digital, assim como a infra-estrutura de conexões e servidores de dados que sustentam o que chamamos de Internet. Na perspectiva da cultura digital, não nos referimos ao fenômeno Internet como uma mídia específica, como o telefone, o rádio, e as TVs aberta e à cabo. Estas mídias, conforme bem apresentado por Tim Wu em "The Master Switch", obedeceram ao ciclo de evolução ("The Cycle") padrão, que em seu início se caracteriza pela abertura, pelo amadorismo e a competição, e depois paulatinamente tende à formação de monopólios proprietários fechados. Wu enxerga um caminho análogo para a Internet, na medida em que esta se move de suas origens, no tempo da inovação distribuída, veloz e 'selvagem', em direção ao domínio de grandes monopólios (Google, Facebook, operadoras de telecom, Apple, etc.).

A reflexão da Ecologia Digital parte do princípio de que a característica básica do protocolo que fundamenta a rede mundial de computadores é a abertura, ou melhor dizendo, a qualidade de ser aberto (openness). No desenvolvimento das políticas de cultura digital do Ministério da Cultura, sempre esteve presente a premissa de que a Internet foi concebida originalmente para a colaboração participativa, e não para atividades comerciais, e portanto, iniciativas de caráter público tem melhores condições de desenvolver o pleno potencial da rede em seu estado nativo.

É perfeitamente viável construir modelos de exploração comercial para a web aberta, e não à toa podemos dizer que trata-se do setor da economia que mais cresce no mundo. Entretanto, não é aceitável que a lógica do mercado venha a alterar os princípios básicos originais de funcionamento da rede, responsáveis pelos (fantásticos) efeitos de democratização / descentralização -- cerne de toda a transformação trazida pela Internet. Vale mencionar por exemplo a famosa neutralidade da rede, que viabiliza os processos de inovação generativa, os quais continuamente engendram novas modalidades distribuídas de agregação de valor nas pontas de rede.

Para caracterizar melhor este ecossistema da cultura digital, estamos nos referindo ao conjunto de possibilidades viabilizado pela acesso universal à Internet em banda larga, pela convergência das mídias digitais, pelo barateamento (democratização) do hardware digital, pelo software livre e os modelos de trabalho colaborativo em rede, pelo compartilhamento de conhecimento e cultura, pelo acesso qualificado ao acervos em domínio público, pelas inúmeras oportunidades de interação transnacional via rede, pelo remix digital, pelos modelos inovadores de participação cidadã na construção das políticas públicas e na governança... estamos falando, enfim, de cultura digital, da cultura de uso que se desenvolve em torno destas possibilidades, neste ecossistema. Este é o espaço de realização da convergência digital, onde uma rede de TV broadcast como a AlJazeera por exemplo, um arranjo típico da mídia tradicional, pode operar como elemento ativo da cultura digital.

Portanto, pegando o gancho do David (El Oso) Sasaki ao comentar sobre a postura do Morozov em relação ao potencial libertador da rede, "a melhor coisa a fazer é descobrir o que funciona, o que não funciona, e seguir em frente", ou em outras palavras, seguir cultivando o uso e apropriação das possibilidades da tecnologia digital e da rede. Enquanto política pública, este 'cultivo' deve ocorrer especialmente nos lugares e situações onde o acesso à estas possibilidades é mais restrito. Podemos dizer que esta perspectiva tem orientado a formulação da política de cultura digital no Brasil, desenvolvida de forma colaborativa na rede CulturaDigital.br.

PS: o título do post se refere à expressão norte-americana 'it's the economy, stupid!!', que evidencia a importância capital da economia quando se discute os fatores que influenciam a política. Quando Obama disputava as prévias do partido democrata norte-americano com Hillary Clinton em 2008, um op-ed no NYTimes sob o título 'it's the network, stupid!!' apresentava alguns fatos novos que poderiam alterar o cenário. Creio que estamos neste momento testemunhando acontecimentos marcantes, extremamente relevantes para a reconfiguração dos padrões de análise da conjuntura social, política e econômica. Ou seja, temos todos muito o que aprender...